segunda-feira, 8 de setembro de 2008
A linha do Tua
Viajar pela via-férrea do Tua – talhada a machado por deuses escravizados – é experimentar o efeito alucinogénio de pendurar os olhos numa janela donde se vê o chão do céu. Começou por ser um rio de esperança, a linha do Tua. Um rio de esperança que o sono dos homens afugentou. É, agora, antecâmara das memórias. Um modo ingénuo de gastar o que resta da sola dos sapatos ou, quiçá, o derradeiro sopro antes da nudez. Uma certa ocultação, por intermédio de metáforas, dos suspiros que suspiramos e não queremos. É não entregar o corpo – o corpo do comboio ainda morno – às águias da noite.
Mas viajar no comboio do Tua é, ainda e sempre, uma feira de emoções. Ora sob a luz, coada pelas nuvens rasantes, que vai delindo as arestas daquilo que nos chega, transportando-nos para dentro de um espelho – o espelho baço da noite; ora sob o sol que escorrega, espesso, pelas margens do rio. Como se alguém houvesse derramado sumo de laranja nos bicos das montanhas. Sumo que, por ser espesso, escorre com lentura, sem pressa de se dissolver nas águas do rio.
O viajante busca o sonho, qualquer que ele seja, sabendo que os pesadelos são apenas as curvas da viagem. Aqui, dentro do Vale, nas entranhas de um túnel, apenas a escuridão é palpável. Tal como são palpáveis as sombras quando vivemos dentro do medo.
Mas viajar é, também, entrar em cena sem que algum director, ou quejando, tal nos ordene; desenhar milagres de cruz; mergulhar nos olhos de quem nos vê, e – porque a morte é como Deus, está em todo o lado – tropeçar na barragem que não vemos mas está lá, a joeirar penumbras nos olhos do comboio.
A morte é o epílogo de todas as viagens. Uma vida que é substituída por outra vida que, por sua vez, é substituída por outra vida… até ao além… onde a viagem nunca acaba e, alucinados, perguntamos: ubi veritas?
Jorge Laiginhas
(Transcrito do Diários de Trás-os-Montes, com autorização do autor)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Olá
...mesmo em correria: - Que classe!!!!
Obrigada a ambos.
Abraço
Esmeralda
Enviar um comentário