quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Ou Tua, ou Rua



Fosse eu homem cá de crendices, e até havia de dizer que anda o mafarrico à solta ali para os lados do Cima Corgo. Quer dizer, está uma linha do comboio, por sinal uma das mais belas do país e arredores, cento e vinte anos sem qualquer acidente digno de registo, e agora num escasso ano e meio, acontecem nela nada mais nada menos que quatro acidentes graves com mortos e tudo.

Num troço curto de uma dúzia de quilómetros, quatro desinfelizes tiveram funesto encontro com a mulher da seitoura, e num fechar de olhos que jamais se descerraram, foram-se encavalitados nas asas do anjo negro, como se andar por ali em maravilhosa viagem de encantos assombrosos fosse do desagrado de quem tudo pode. Mais parece que tal coisa não é para simples mortais.

Quatro horas más em pouco mais de duas mãos cheias de meses. Como de costume cérebros esclarecidos e esforçados encomendaram rigorosos inquéritos a doutas mentes, daquelas que descobrem até a razão de a agulha ter um buraco, mas findas as diligências, ninguém consegue encontrar razão inequívoca para as desgraças. Coisa assim sem explicação, tenho para mim que mesmo só obra de belzebu ou alguém por ele. Cruzes canhoto que se esconjuro, arreda-te para lá chifrudo que até se me arrepia a espinha, só deitar para a tua presença. Credo.

Ainda agora, e depois deste ultimo acidente ocorrido a vinte e dois de Agosto, um punhado de adolescentes desapertou à mão e tirou linha fora parafusos daqueles que parecem dar para apertar o mundo nos seus eixos, mas continua-se sem saber a causa das coisas. Um bem colocado senhor no atapetado do seu gabinete disse que tal desiderato é impossível, pelo que nada me custa acreditar que ou os voluntariosos jovens são marcianos de força descomunal, ou então não passam de uns mariolas que se querem divertir à nossa custa e espalharam parafusos ao longo da via, para depois fazerem de conta que os despertavam. Claro que pode acontecer que o tal senhor não veja estadulho em olho próprio, e aí então a coisa muda de figura. Mas pronto!
Mesmo o facto de naquela linha circularam automotoras nitidamente desadequadas por serem altas e estreitas, nada diz aos esforçados senhores dos inquéritos. São estéticas, tem um ar todo urbano, e logo basta para que sejam tidas como recomendáveis. Dão um ar de modernidade no meio do campo, e só isso pareceu bastar quando alguém decidiu coloca-las ao serviço entre o Tua e Mirandela. À empresa detentora da concessão deu-se-lhe o nome de «Metro» para se dar um ar menos rural, e sem silvos lá se garantiu o funcionamento da linha pelo menos até agora.

Num país que com toda a parolice e contra o correr dos tempos desactivou quase tudo o que era linha de caminho de ferro no seu interior a troco de rodovias mais prejudiciais que benéficas em termos de ordenamento do território, parecia que se salvava assim uma das jóias ferroviárias da rede nacional de comboios. O turismo virou moda, e com ele a linha do Tua ganhou procura e valor. Nada mais nada menos que 40 mil almas passam anualmente pelos bancos das carruagens que circulam ou circulavam a roçar o rio Tua.

O problema, é que a paginas tantas da nossa governação, há já uns anos, os comboios foram mandados parar, e as atenções viraram-se para outros meios de transporte. Desinvestiu-se nas linhas férreas mesmo significando isso o desarticular de uma estrutura importante da coesão nacional. Com a linha do Tua, aconteceu por maioria de razão a mesma coisa. É longe, é no interior, e contam-se por poucos os boletins de voto necessários para quem ela serve em primeira necessidade. Então depois que se concluiu que mais mês menos mês ela é para desactivar, para que atentar nela?

No entanto, continuam sem achar explicação para as desgraças os senhores que mandam e os que buscam as pistas. Para mim, a esses e outros que tais, castigava-os com uns meses de trabalho e de vida naquelas bandas. Era como antigamente quando se dizia aos ferroviários tresmalhados a castigar:
- Ou Tua, ou rua!
Podia ser que esconjurassem a coisa má que anda por lá. Digo eu.

Manuel Igreja; Diário de Trás-os-Montes
Publicado com a devida autorização do autor.

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